domingo, novembro 05, 2006

Fuga de mim


Senti-me presa aqui… reprimida! Quero escrever, mas não posso… Quero gritar, mas não me deixam… quero ser livre, mas estão a prender-me (ou será que fui eu que me prendi?) Quero viver, quero ser eu, mas já não sei como o fazer…

Por isso parei!

Desliguei todos os relógios, todos os tics irritantes e todos os tacs apressados!

Parei a minha vida… e parti! Para o meu mundo à parte, a minha outra realidade… abracei um novo mundo, uma nova realidade, uma nova casa!

Tenho rasgos de loucura, rasgos de lucidez, rasgos de confusão, rasgos de mim… e acabei por chegar à conclusão que eu sou demasiado “rasgada”!

Quando estou sozinha, aqui nesta casa… sinto-me ser diferente! Sinto menos o sentido de estar perdida, a confusão não é tão obvia… talvez esteja apenas a fugir-lhes, mas é tão mais fácil deste modo!

A decisão foi fácil, foi simples, foi automática…

- Estou cansada de tudo isto, estou cansada de viver!

Peguei no básico e pus-me a caminho. Quando cheguei à porta, reparei que ainda estavam bem marcadas as rodas do carro na folhagem junto ao portão! Respirei fundo! Não sabia se estar ali sozinha me transportaria para um lugar de paz, ou se me deixaria vencer por mim mesma, pelos meus problemas, pelas minhas confusões… Continuava a ser um mundo paralelo, continuava a ser uma loucura estar ali, porém hoje, uma loucura solitária!

Estava sozinha na alameda, parada em frente ao portão. No meu bolso tilintavam as chaves… Antes de entrar, olhei em redor! Reparei nos molhos de folhas secas, estavam alinhadas, como se alguém tentasse em vão junta-las… Pensei em respeitar esse trabalho de alguém sem nome nem rosto, mas desta vez a loucura transcendeu-me e inundou todos os meus poros… comecei a pontapear as folhas e a deixa-las voaram em meu redor numa dança descontrolada, tocarem o meu rosto gelado e senti-me quente, abraçada por algo, por Alguém que eu não via mas que sentia! A mistura daquelas cores um tanto ao quanto quentes e sujas, extasiava-me e vi-me sorrir sem motivo!

Abri a porta… Estava tudo como deixara-mos! Pousei o saco com comida no balcão de mármore frio da cozinha, a mala de roupa na cama grande e por momentos estirei-me transversalmente nela! Na penumbra, tentei pensar em tudo o que fazia, mas não conseguia! De certa forma, sentia que a realidade dual me estava a envolver lentamente, como um veneno inodoro, incolor… ela estava a apropriar-se de mim!

Fui percorrendo a casa e abrindo todas as janelas e portadas deixando que o som do mar, o ar salgado entrasse e rodopiasse em todas as divisões… Depois, arrumei meticulosamente tudo o que trouxera nos armários! Não tinha pressa e sentia que cada gesto meu era mais cuidadoso, mais preciso… me aproximava de uma perfeição, ainda que um tanto ao quanto virtual!

Sem mais nada que fazer ali, vesti o casaco comprido, o gorro e sai em direcção à praia! O vento ficara mais forte e agora fustigava-me o rosto violentamente! Sabia que o mar estaria bem bravo quando lá chegasse! Estaria bravo comigo?

Subi as dunas e sentei-me no passadiço… não havia ninguém em redor, nada… só eu, o mar, o vento, a angústia de não saber mais nada… Tentei estabelecer uma ligação qualquer com o mar, com a realidade dual, com aquela praia…mas já não tinha forças para nada!

Comecei a questionar-me! O que fazia eu ali? Quem era aquela estranha que eu via todos os dias no espelho? O que fizera ela com a minha vida? Qual era o sentido da minha vida? Um sorriso irónico percorreu-me o rosto! Sabia que tinha respondido a essa pergunta há muito pouco tempo, mas incrivelmente, já não me lembrava do que respondera! Que desilusão para quem mo perguntou, não?

Não sei o quero, o que sinto… na verdade eu não tenho personalidade fixa, nem sei quem sou! Às vezes desaparecer, parece ser a única solução…

Antes que a loucura me transcendesse, decidi escapar-me na realidade dual! Talvez aqui eu me encontre, talvez encontre Deus…Ele deve andar por ai algures, não?

Uma gota fria caiu-me no rosto! Por momentos fiquei confusa! Não sabia se seria uma lágrima minha ou do céu… mas rápido me apercebi que já nem lágrimas tinha, que a minha tristeza era mais profunda do que qualquer dor somada e multiplicada!

Despi o casaco e descalcei-me, arregacei as mangas, soltei o cabelo daquele gorro grosso e fui caminhando lentamente pela areia!

O frio nos meus pés, fez-me sentir viva… e senti-me vagamente feliz, por conseguir ter pelo menos uma certeza: sentia frio! Numa vida onde nada é certo, aquilo, fez-me sentir bem!

O vento violentava-me o rosto, o cabelo, as roupas…

Quando estava mais perto da água, a chuva começou a ficar mais intensa, então abri os braços, rodopiei umas quantas vezes com o rosto voltado para o céu e os olhos abertos até me deixar cair de costas na areia… Esvaziei-me por completo e fiquei a sentir apenas as coisas simples deste momento só meu! O frio, o mar, o toque suave de cada gota no meu rosto… Fiquei assim muito tempo! Não sei precisar quanto tempo foi ao certo, sei que não foi demasiado, nem foi pouco, foi o exacto! Sem mais nada, só o meu corpo, as sensações elementares da vida…

Foi-me fácil perceber que se eu não queria perder de todo tudo o que ainda restava da minha vida, teria que começar pelo básico!

Quando a tempestade acalmou e o meu corpo já estava demasiado molhado, chegando ao ponto de eu não saber mais se estava deitada na areia ou na água, reuni as restantes forças de mim e ergui o meu corpo! Sentia-me pesada… as roupas estavam a tornar-se um embaraço e dificultavam-me o andar!

Fui caminhando para casa! Casaco no ombro, sapatilhas numa mão, cabelo colado ao rosto… A chuva não parava, mas eu não tinha pressa de nada! Sempre desejara fazer aquilo e hoje, não havia mais nada moral ou social em que pensar ou me preocupar!

Cheguei à alameda… tudo permanecia deserto, sem qualquer sinal de vida! Os meus pés descalços pisaram um dos ainda restantes montes de folhas agora já molhadas! A sensação foi agreste, selvagem até, ouso dizer! Mas soube-me bem… Era um misto a áspero e a escorregadio… Todos os castanhos, amarelos, beijes e laranjas apesar de molhados faziam-me sentir um morno em mim, já que o meu corpo já estava no seu pólo glaciar!

Madalena Rocha

4-11-2006