quinta-feira, julho 09, 2009

Prova-me e diz-me quem sou


Abri a porta e mal dobrei a passagem comecei a despir as roupas que me faziam sentir tão pesada! Depois de me ver livre daquele peso absurdo, liguei a torneira da água quente e deixei a banheira a encher… Fui ao quarto das crianças, abri o armário e na segunda gaveta… lá estavam! Montes de toalhas macias, meticulosamente passadas e apesar do tempo, com um cheiro incrível a lavado! Aproximei uma delas do nariz e respirei fundo…
Percorri rapidamente a casa e fechei todas as janelas, o meu corpo gritava por algum calor…
Mergulhei na banheira e o contraste de temperaturas soube-me bem! Lentamente fui começando a sentir-me cada vez melhor e ao olhar por entre a limpidez da água, comecei a ver o meu corpo, as suas formas e comecei a lembrar-me de um momento em que eu não estava sozinha numa banheira como aquela e umas mãos acarinhavam aquele corpo que eu via ali agora, nu, despido, insípido, imperfeito… os pensamentos recomeçaram a fluir e antes que se apoderassem de mim, criei, sem muito esforço, uma barreira entre mim e a minha mente, não me queria deixar perder em questões sem resposta nem solução! Queria viver, sentir e pensar unicamente naquele momento… Fechei os olhos e fui tocando o meu corpo como se nunca o tivesse visto ou sentido… Não era nem de longe nem de perto, o que eu gostaria que fosse!
Quando me senti limpa e quente o suficiente, sai, enrolei o cabelo numa toalha de rosto e vesti o fato de treino aveludado no interior…ao roçar na pele nua, a sensação era confortante, como se me mimasse, como se a cada movimento uns lábios suaves percorressem o meu corpo!
Fui até à cozinha, enchi a cafeteira de água e abri um pacote de café…o cheiro do café invadiu-me, era incrível! Apeteceu-me morder os grãos, mas naquele pacote, já só havia pó! Apercebi-me que não sabia o quão gostava deste cheiro! Senti-o uma vez mais antes de colocar a cafeteira ao lume!
De novo na casa de banho, sequei energicamente o cabelo contra a toalha e depois passei-lhe uma escova rapidamente para desembaraçar para por fim o voltar a prender num rabo-de-cavalo! No quarto procurei as pantufas de pelugem que trouxera… era incrível a duração da minha memória para me lembrar destas coisas (se ao menos fosse assim com tudo!). Já não me lembrava onde as pusera… Quando finalmente dei com elas (obviamente no local mais natural, de baixo da cama). Calcei-as e o pelo fofo fez-me cocigas… pensei em deixar-me rir, mas percebi rápido de mais que não me apetecia rir! Eu nunca gostei muito de cocigas! Ao pensar nisto, a minha mente sentiu-se livre da barreira que eu construíra e logo o meu incrível e incontrolável imaginário se pôs a passar slides diante dos meus olhos! Vi sorrisos, abraços, olhares, um rosto…
Foi o cheiro… aquele cheiro de que me apercebera há pouco que gostava tanto que me fez despertar da minha sessão de cinema gratuita e involuntária! O café estava feito! Enchi uma chávena, uma colher de açúcar e dei um trago. Senti cada pedaço do meu corpo ser preenchido por uma onda de calor, de satisfação…
Com calma, fui abrindo os armários e enchendo o balcão de mármore rósea com tudo o que precisava para preparar algo que se comece! Comecei então a descascar umas batatas… cada milímetro a mais sem casca, era mais um milímetro meu que se despia! Decidi esquecer por momentos a barreira de protecção e deixar-me ir… fui descascando e aventurando a minha mente a ficar mais despida! Depois de protecções, cortei-as em palitos finos e curtos, como sempre me soube bem! Entretanto dei mais um gole no café!
Senti-me parva ao deixar que reles comida me personificasse a minha mente, o meu pensamento… mas acabei por deixar de parte a lógica e deixar-me levar onde me levasse o pensamento! Fragmentei a minha personalidade, o meu eu numas dezenas de palitos finos e curtos… Talvez assim, em pequenas partes, eu me conseguisse avaliar melhor e perceber lentamente, enquanto as batatas fritavam, aquilo que eu verdadeiramente era! Mas rapidamente compreendi, que o tempo que as batatas levavam a fritar, era curto de mais para eu me conhecer! Arrumei todos estes fragmentos do meu eu na gaveta dos talheres enquanto procurava uma escumadeira e uma taça para onde transferir as batatas quando aquilo acabasse o seu rapidíssimo processo de fritura! Estava a tornar-me parva de mais, entregue naquela solidão…
Mais um gole de café e ficou apenas espaço para mais um trago!
Entretanto, estendi um pano com motivos marinhos sobre a mesa e nele espremi a posta de bacalhau. Lentamente, fui desfiando-a… Assim como quem se rasga interiormente… Quando terminei, em cima da mesa, encontrava-me completamente desfeita… entre sonhos, pensamentos, ideais, moralidades (e imoralidades cometidas), pensamentos, teorias de vida e do meu ser, recordações, hipocrisias, personalidades, banalidades… eu estava reduzida a um conjunto infindável de partes que não pareciam encaixar de forma alguma! Como era possível despersonalizar-me assim tão rapidamente? Como era possível aquilo ter sido (há cinco minutos atrás) uma posta de bacalhau? Como podia eu explicar racionalmente que há tão pouco tempo atrás eu era inteira, completa, segura… e agora, não era mais que imensos fiapos de bacalhau demolhado???
A cozinha começou a ficar mais quente, com um aspecto mais caseiro… no ar, começava a pairar o cheiro a fritos e o crepitar do óleo inundou-me os ouvidos! Uns anos atrás, o mesmo som, o mesmo cheiro, um outro lugar… um sorriso materno, um abraço doce, um tropeçar, gritos, lágrimas, mais mimos… Arregacei lentamente uma das mangas da camisola! A cicatriz continuava ali…
Espremi uma vez mais a posta, agora desfeita e deixei-a ficar assim embrulhada…
Agarrei em dois alhos e descasquei-os! Estranhamente, o seu cheiro incomodou-me! Era assim que eu me sentia interiormente quando tomei a decisão definitiva de partir para ali, uma mistura de algo que cheirava incrivelmente mal… Foi fácil perceber o porquê de nunca conseguir manter perto de mim muita gente! O meu eu fedia a podre, a alguém que ninguém se orgulharia de dizer ter por amigo! Num impulso de raiva, de nojo, dei um murro nas cabeças de alho, naqueles pedaços fétidos de qualquer coisa…
A mão doeu-me! Tinha batido com demasiada força… Respirei fundo e tentei ser consciente. Estava a deixar-me levar pelos pensamentos medíocres que toda a gente tem! Voltei a respirar, mais fundo ainda… Peguei numa folha de louro, lavei-a meticulosamente, como se me lavasse de todos os pensamentos parvos! Estava ali para esquecer a realidade de todos os dias, para ser eu mesma e não me deixar ir sendo o que os outros pensam que eu sou! Parti a folha ao meio e retirei-lhe o nervo duro que divide a folha. Aí misturei tudo o que sempre desejei, sem nervos que me reprimissem, uni as duas metades, sem separações! Misturei quem sou de verdade a todos os meus sonhos… Que andava eu a fazer da minha vida? Porquê ter um passado que me marcasse e me mutilasse todos os dias? Para onde caminhava eu? Na minha vida faltava cor, vida, odores, sensações, emoções, sonhos livres, sem repressões! Na minha vida faltava o essencial, sentido!
Forrei o fundo de um tacho com azeite, juntei-lhe os alhos e o louro e acendi o fogo! E ali estava eu, isolada do mundo, numa casa onde só uma pessoa no universo me poderia encontrar, a tentar fugir de mim mesma e personificando naquela mesma cozinha tudo o que eu era e tudo o que eu desejava ser!
Olhei o fundo do tacho, uma mistura de condimentos que dariam alguma coisa que gosto… uma vez mais senti que eu mesma, não passava de uma mistura de algo. Só não sabia o que essa mistura daria no final! Será que alguém, algum dia, gostaria de mim assim? Alguém gostaria de me provar, de me sentir, verdadeiramente, sem nada que me rotule…?
O crepitar do óleo fez-me acordar…as batatas estavam prontas! Olhei-as… pedaços de mim, dourados, estaladiços mas tão frágeis aos dentes do mundo! Subi a rede da fritadeira e deixei-as escorrer o óleo! Os meus sonhos eram assim… imensos, dourados, mas estranhamente frágeis! Eu não queria mais nada desses sonhos, eles mesmos me bastavam…
A cozinha adquirira um sabor quente e familiar!
Quando os alhos no fundo do tacho ficaram mais dourados retirei-los com uma colher assim como o louro… tal como fiz com a minha vida, antes que o fervilhar do mundo e da gente que me rodeava me matasse, me deixasse queimar… fugi, para ser eu, só!
Lentamente fui passando os fiapos de bacalhau para o óleo a ferver… Estava a começar a mistura! Tudo o que fui, que sou, que queria ser… Estava a começar a preparar-me para me provar e saber se tinha razão de ser, tudo o que me diziam! Fosse qual fosse o resultado, sabia que teria uma desilusão! Algo estaria estragado nisto tudo! Ou o meu eu, ou o que eu mais temia… as pessoa que eu pensava que me amavam!
Qual seria pior?
Envolvi os pedaços no óleo e o aroma foi-se tornando demasiado apetitoso… Tudo passou a ser sinónimo de misturar… só podia esperar pelo resultado final!
As batatas, um ovo batido… misturar, envolver… cinco minutos em lume brando com o testo! Peguei num pato, num garfo (ia dispensar a formalidade da faca)… fui até à sala, abri a cortina da porta da varanda… queria ver a chuva cair, queria ver a beleza simples de uma tempestade, queria ver como as gotas caiam ondulando do céu, queria ver a solidão que um dia pode ter! Arrastei o puff grande até à janela da varanda…
Fui até à cozinha, enchi o prato… Aparentemente aquilo era uma coisa demasiado confusa, misturada, não muito bonita esteticamente! Mas o cheiro era muito atraente, apetecível… A curiosidade começou a consumir-me! Instalei-me no puff, olhei a chuva e enchi o garfo… respirei fundo! Mastiguei lentamente, saboreando cada dentada… Gostei, muito! Seria só eu?
Lá fora a chuva começou a cair mais intensa… senti sede! Fui até à cozinha, espremi rapidamente uma laranja, acrescentei-lhe água, uma colher de açúcar e derramei num copo…
Ouvi uma porta abri! Só tu sabias esta morada! Só tu tinhas mais uma chave, a única cópia existente desta casa da praia… Fiquei parada no centro da cozinha com o copo na mão! Eu queria pensar… eu tinha-te dito que precisava de espaço para mim, que aquilo tinha chegado ao fim! Devia ter-te pedido a chave da porta…
Apareceste na ombreira da porta da cozinha, com a maior naturalidade do mundo… Tinhas o prato na mão e mastigavas ainda!
- Que é isto?
- Que é que estás aqui a fazer?
- Está bom de mais! Eu gosto!


Madalena Rocha
7-12-2006