domingo, outubro 15, 2006

Baptismo da realidade dual


Sentei-me prestes a digerir tudo o que sentia… Respirei fundo! Que dia de sonho… Quando me sentei no banco ao teu lado no carro, não imaginava nada, nem sequer onde iríamos nós de ir ter! Uma música tocava ao acaso na rádio, o dia estava ameno, suave… O céu pintalgado de nuvens cinzentas e rasgos de sol…

Falamos despreocupadamente, como se nada neste dia fosse diferente, como se não tivéssemos programado nada (o que no fundo não deixa de ser verdade), como se tudo fosse perfeitamente normal!

Sem rumo (ou não) paramos em frente da casa… Era pacata! Gostei dela logo no primeiro olhar de relance… Tinha um ar envolvente que me absorvia na simplicidade, no rústico… Quando sai do carro, olhei-a bem de frente, tentando não perder nenhum pormenor. Gostava, decididamente! Lentamente fui-me encaminhando para o portão e entre o carro e o mesmo, dei comigo perdida no misto quente de cores dos inúmeros montes de folhas secas… amarelos, laranjas, castanhos, beges… Por momentos, apeteceu-me pontapear todas elas, faze-las voarem em nosso redor para que no ar o ambiente quente se tornasse mais mágico… mas depois de pensar em todos os prós e contras, conclui que estar ali, só por si, já era mágico o suficiente!

Por dentro… ainda mais acolhedor… senti-me em casa! E a cumplicidade de cada gesto nosso, só me fazia querer que tínhamos acabado de imitar a brodway ou holiwood e nos tornáramos personagens vivas de um filme qualquer! Depois de um pequeno reconhecimento, estirei-me numa das camas e deixei-me ficar embrenhada numa conversa que já não me lembro muito bem… a penumbra, a simplicidade de cada um de nós em sua cama numa conversa banal…

O que estarias a pensar? O que estarias a imaginar? O que esperavas deste dia? Estas questões não me deixavam ouvir o que realmente me dizias… Sabia que este dia, este lugar… tudo, era novo, era o nosso mundo, a nossa realidade paralela, mas… no fundo, o que seria isso? Não discutíramos regras, normas, decretos…nada! Quis fazer-te ouvir estas questões, mas a verdade, é que estava convencida que te questionavas do mesmo modo! Por isso, que fosse como fosse… deixei que o tempo construísse as raízes da realidade nova…

Perto dali, o mar sussurrava!

Descalçamos as sapatilhas, arregaçamos as calças até aos joelhos e fomos andando pela praia deserta, sem rumo, sem objectivo! Era tudo novo… A conversa era agradável, e nada soava a compromisso, a relação… apenas a cumplicidade da ousadia de desafiar a vida, a ética, a moral e saltar sem medo para a realidade paralela que decidimos construir… Sentamo-nos algures a olhar as ondas, a espuma, o céu cinzento…Não era necessárias muitas conversas, na verdade, não sei se haveria assim tanto para se dizer!

Uma aposta! Fria? Muito fria? Gelada? Sorri!

- Fria!

- Gelada!

- Vamos ver? – Sai disparada até junto ao mar! Lentamente deixei que o êxtase da água me percorresse! Sentia-me a adaptar-me verdadeiramente a esta nova realidade…

- Fria, ganhei! – O meu sorriso era trocista, confesso! Trocamos um olhar cúmplice… apetecia-me mergulhar, os teus olhos diziam o mesmo! Olhei-nos… completamente vestidos! Não estava preparada para mergulhar e por muito que tudo aquilo parecesse saído de um filme, a praia, não estava deserta (pelo menos, não tanto quanto desejaríamos). Corremos para casa, em busca de alguma peça de roupa esquecida dos tempos em que fora habitada… Confesso, comecei a ficar entusiasmada com a ideia de mergulhar naquele mundo, naquela realidade… a água, o mar, o vento… desafiar as regras… Depois de uma vista de olhos rápida ali estava! Não o melhor, mas servia para matar a nossa vontade…

Voltamos à praia e esperamos que as famílias felizes que passeavam despreocupadas pela praia se afastassem para dar-mos asas à nossa loucura, a primeira de muitas, acho! Enquanto isso, olhávamos o céu lado a lado… era fim d tarde, mas havia bastante claridade… o céu tornara-se mais denso de nuvens cinzentas e o vento, ficara mais forte! Era um puro dia de Outono e nós, prontos a mergulhar nas águas frias (e não geladas) do nosso mar, da nossa realidade… Na realidade, não passava de um baptismo! Ia-mos baptizar o nosso mundo, a realidade paralela, as nossas personalidades duais… os nossos corpos, um pouco estranhos um ao outro ainda!

- Vês as estrelas?

Ri! Estrelas? Em plena tarde?

- Claro!

- E olhos?

- De quem? De Deus? Sim… estou a vê-los!

- Se calhar é um leão, não Deus!

- Tens razão, estou a ver-lhe a juba!

Cai-mos na gargalhada, na loucura contagiante, absorvente e já tão embrenhada a que nos expúnhamos e estranhamente, sem ninguém ver!

Quando os olhos mais indiscretos se afastaram do par de amigos doidos a rirem na areia, vesti a saia comprida e o casaco exageradamente grande para mim… Por momentos, senti o meu corpo completamente nu por debaixo daquilo e um arrepio percorreu-me! Rapidamente, tiraste a roupa e os teus boxers bicolor saltaram-me à vista! São giros… Não te tinha dito isto, pois não?

Corri sem mais nada que me prendesse par o começo de um novo mundo, para o meu baptismo sem retrocesso… a água inundava-me a alma, o corpo, a vida! Sentia-me livre… se não fosse por ti, o meu baptismo teria durado até ao anoitecer… O teu corpo arrepiava a todo o momento… Estarias a sentir o mesmo que eu? A liberdade? Não sei… só me queria perder na nova realidade!

Quando saímos, como se tudo aquilo fosse normal, abraçamo-nos numa única toalha e olhamos o mar juntos… Imaginei-me mesmo como se tudo fosse um filme e acabei por perceber, que não estava muito longe de o ser… ali, éramos a outra parte, o outro lado da dualidade da personalidade que temos, ali era o outro mundo! Da forma cúmplice e entre sorrisos, trocamos de roupa e guardamos o nosso baptismo no cantinho das recordações diferentes e especiais da nossa memória! Tenho a certeza que nunca ninguém teve uma pia baptismal como a nossa, mas acho que é justo, pois ninguém vive duas realidades, nem muito menos, alguém vive a nossa realidade paralela! Abandonamo-la sorrindo e prometendo voltar em breve, o mais breve possível! Por agora, fora a minha memória (e a tua) a única coisa que resta deste dia, é o teu perfume no meu casaco!

Madalena Rocha

15-10-06